hoje verbo hoje verso hoje verto hoje perto hoje certo hoje corto hoje corro hoje morro hoje

20080620

A caneca do café pousou quente na toalha de plástico e quase sobre o envelope por abrir. O silêncio estourou na imagem daquela carta. Outra carta.
Abro de peso no ventre o envelope igual com sempre, de tépida textura e de igual odor a papel velho que me lembra a brisa da quinta das flores, o mesmo som seco de rasgar preciso, limpo. Nunca estranhei a ausência de remetente ou endereço, sabia bem a quem se destinava e de onde vinha, mas sempre um desengano ficava, ligeiro. Não havia selo. Uma estampa improvável que pintaria alegria em cores nunca antes vistas, nesta carta parda, talvez soltando timbres que desenhariam sorrisos esquecidos.
Solto a folha que desdobro e sem surpresa reconheço o vibrar daquela letra que leio, lento, as palavras que lembro.

Acordei hoje com estes ecos soprados aos meus dois ouvidos e atarefo-me lentamente nos automatismos matinais. Tu sabe-los de cor, são iguais aos teus e é provável que tenhas um dia acordado com os mesmos sopros ecoando entre os sonhos que já esqueceste e o ritual de um novo dia a lembrar, todos os dias.
A luz cálida que adivinho lá fora não me impede de ligar a lâmpada que lateja amarelo, a única cor que combina na série de gestos que fazem subir o café, da mesma marca que bebias, moagem fina, como a presença da tua ausência.
Sento-me de olhar fixo no estore semicerrado, sem contar quantas são as filas que descem a meia janela nem quantos os pontos luminosos que as desenham. Fixo o olhar no espaço entre dois pontos e trago o aroma quente, amargo, olhando o olhar que me olha, mesmo depois de deixar cair as pálpebras.
A caneca do café pousou quente na toalha de plástico e quase sobre o envelope por abrir. O silêncio estourou na imagem daquela carta. Outra carta.
Não abro.



Adivinho as palavras que deixaste. Adivinho o papel que dobraste. Adivinho a tinta que escreveste. Adivinho o redondo ondular da tua mão. Da tua mão esquerda, aquela que seria do lado do coração, tivesses tu coração no lado esquerdo.
Não abro.
Adivinho-me a abrir a mesma carta parda. O mesmo rasgar fino do lombo lacrado a cuspo. O mesmo gesto de pousar o rasgo. O mesmo roçar de folha seca que desabrocha em onda de estalidos. A mesma dureza do papel trespassado pelas lâminas de sol frio. As mesmas grades de estore projectadas nas linhas de palavras.
Não vou abrir. Não abro.
Adivinho tudo o que está estrito nesta carta. Todas as sombras de mais um despertar. As náuseas do primeiro cigarro como se fosse o último. O lento adormecer de todas as dores em cada novelo de fumo expelido. Os sentidos que acordam nos estalos magros do corpo suado. A memória de mais uma noite sem história, escura de sonhos, funda e prenhe de nada. Todos os bafos de fumo azul e o gesto que o afoga no ninho de beatas. As crostas na vontade que doem mais, tantas vezes mais que o desejo pelo fim do dia, em segredo, pelo fim dos dias.
Não. Não vou abrir. Não abro.
Já sei o que diz. Que alguém a deixou debaixo da porta enquanto te torcias na cama. Que não ouviste bater e que só reparaste dias depois. Que consegues sozinho e que não precisas de cartas a lembrar que ainda és gente, que sabes que és gente como todos os outros e que não é à força dos ditos e dos escritos que se é gente. Que largaste a carta na mesa da cozinha e que só não rasgaste pelo prazer que tiras em ma devolver.
Não...

Não. Não abro os olhos. Ainda não.
Ainda tenho a retina impressa de cores improváveis. A janela feita linhas de pontos sem número, latejando em negativo pulsante. A sombra clara dos cantos da parede, o plano oval da mesa que se insinua em rodapé. A névoa.
A mão arrefecida no toque da caneca do café. Lento sorvo, maquinal, frio e amargo, o trago negro da manhã em que abri os olhos e não havia mais ninguém. Apenas o silêncio que estourou na imagem daquela carta. Outra carta.

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