hoje verbo hoje verso hoje verto hoje perto hoje certo hoje corto hoje corro hoje morro hoje

20100805

paLavra lugar

São como arrepios que se me dão, de quando em vez, intensos e de uma estranheza só comparável a um déjà vu para além dos sentidos. Contam-se pelos dedos duma mão tais sucedidos em minha existência e sempre sem aparente testemunho, quando só, entro num qualquer local vazio de gente e se me chega presença, ou quando só, pego num qualquer objecto e mais que seu peso me pesa nas mãos. De inquietação, de receio, de intriga me ficou na memória cada um desses momentos e hoje lembro que há tanto tal não me acontece. Seja por mil ou talvez nenhuma razão, certo é que este sentir para além dos sentidos parece-me coisa distante, e tão próprio de se ser cru, tenro de emoções e pleno de ingenuidade, este longe à vista endurecida, hoje toque imune através dos calos de vida.
Mas este tal calafrio de que falo e que mais não acontece, de facto não aconteceu. Antes lembrou-me, mas não aconteceu. E talvez seja por aproximação ao conceito de estranheza no que se não pode inteiramente entender, tal me veio à memória num simples título de jornal: ‘As palavras são um lugar estranho’. Foi como se este título, que suou ligeiro com a leviandade de quem plana sobre as letras gordas dum jornal, se plantasse de manso como coisa indiferente, e sem que desde então deixasse de me acompanhar, permanece na sombra, ressoando, ligeiro, presente.
Dou por ele quando se afina de tempos a tempos noutras palavras cujo sentido apenas posso adivinhar, quando se ilumina no que por vezes ouço e que logo se oculta se de escuta me atrevo a nomear, quando se harmoniza ao me invadirem paisagens no acto de apenas estar, reencontrando o rasto do espanto, escrevendo-me por dentro a estranheza encerrada naquilo que seria suposto entender. Deixa assim de ser estranho que possa escrever sobre o que não pode sequer ser dito, que isso possa sequer fazer sentido para além do que fica simplesmente registado em caracteres reconhecíveis como palavras e que assim permaneçam até que, improvavelmente, cantem por si, noutros olhos.
E ao crer que nada disto é estranho, noto hoje, assim e aqui, que ainda não aprendi como se constrói um castelo de cartas.
Um dia contaram-me as palavras que o que se tem por fundamento nos impede de voar.
Seja. Tal como um castelo de cartas que possa apenas ser construído sobre nada.

20100218

AntónioMe

O António era um homem de um só braço.
E outro braço lhe pendia inerte, como uma comichão, como uma maldição.
E o orgulho que tinha naquele só braço, rematado de mão possante e larga que lhe dava toda a arte de fazer o é necessário fazer, e até mesmo o desnecessário, esse braço que estendia essa mão esquerda num cumprimento quente e informal, era no fundo o orgulho que se tem em tudo o que se tem, e ele tinha esse braço.
O António era um homem de uma só alma.
E outra alma lhe pendia incerta, como um suspiro, como uma negação.
E era de orgulho que renegava a sua própria negação, de se saber capaz do pior sem nunca deixar de olhar os outros como se olhasse ao espelho, capaz do melhor sem entender que se revia no grande que há em todos nós, nessa alma só que ele tinha.
O António era um homem de um só coração.
E tinha pendente no olhar a dimensão desse coração.
E esse olhar cerrou.
Só, esse coração parou.

20091104

aDivinHo

Era um ser de espanto, clarividente, perspicaz e com aquela peculiar característica no olhar, como se daqueles olhos brotasse luz. Ele era tomado por adivinho pelos seus pares, não por qualquer atributo oracular, mas apenas por conseguir ver mais longe depois de cair a noite.
Esse homem, nos momentos de solidão, procurava compulsivamente a sua sombra. Pressentia-a, sentia-lhe o cheiro, quase que a ouvia e nunca, em toda a sua existência, o deixou de atormentar a dúvida de que ela sequer existisse, simplesmente porque não a via.


Jorge Molder : a interpretação dos sonhos .......... a:TóR

20091103

inCerteza

Jorge Molder : a interpretação dos sonhos

Pouco há mais volátil que um sonho, pela incerteza que encerra. Certo é que com Molder aprendi um certo olhar de fora para dentro e aprendi que me enganaria se negasse a capacidade de me imitar. E só de pensar que me falsearia se envergasse uma máscara, negava já a vontade ser, verdadeiramente.
É a clareza de se crer numa máscara como o verdadeiro reflexo de si.

p XcharrO

Há tempo para tudo, só não sabemos quando.
Isto que se segue deveria ser um auto-retrato, hipócrita e a propósito de mais uma identidade, por necessidade, confesso.
Deveria apresentar-me-vos Pedro Chicharro, o autóctone exilado em fakebooks e paragens de pastos encabrestados....
Mas não... tudo o mais seria a mais.

20090528

torrEsmos

O cronista da rádio dissertava sobre torresmos.
Na habitual incursão ao seu próprio quotidiano, o cronista da rádio tinha por arte a transformação da frivolidade em substância delirante que, em fluente eloquência, me deixava traçado um sorriso quase idiota, doce. E frequente era chegar ao riso em cada manhã, tanto mais claro fosse o espelho onde me revia. E o som do torresmo prometia…
Eu até queria rir. A sério… queria.
O som do torresmo fritava-me o cheiro da memória.
O cronista da rádio dissertava sobre torresmos e a imagem do velho de um só dente saltou por detrás dos olhos e… Sabes como gosto de torresmos?... É como gostar por sempre ter gostado, desde gaiato. A tua avó já não me deixa comê-los por causa da ‘atenção’, mas aqui na festa aproveito… e ainda estão quentes. Quando tinha a tua idade, era o almoço que levava para a escola. Um quarto de pão, dois os três torresmos e duas laranjas. Era à quinta e à sexta-feira o almoço que mais gostava. Era o que havia… E ainda gosto.
O cronista da rádio dissertava sobre torresmos e eu até queria rir… a sério que queria.

20090420

arRebatamento?...

Isso já não sei. Já esqueci!
Aqui só há o tempo a passar. O mesmo apascentar os dias à volta do redil onde se morre todas as noites, a esquecer.
Lembrar de esquecer todos os dias, à noite, para que assim saiba o que há para saber.
Só esquecendo se pode saber.
Saber, mais que imaginar.
Saber o espanto quando o tempo cessa. E o tempo cessa!

Não, não! Não é o silêncio que traz o espanto.
A brutal ausência de som! De certo modo é como se fosse esperada. O silvo fino que julguei ser o som do tempo a passar, fiel companhia do tímpano, quase imperceptível e que de repente se cala.
Impressiona, mas não se compara ao que mais espanta!

Não é a treva. Não, não é! Nem tal coisa existe.
Será antes o entendimento da luminosidade que se apaga num processo intemporal. Tal como o súbito cerrar de olhos onde o negro é afinal um lento pejar de cores, volutas que se modelam aos impulsos do nervo óptico. É como se as cores se degradem nos pigmentos que as compõem e sem que no entanto haja forma ou movimento. É como se revelasse um fundo vibrante composto por todos os tons, que se confundem e que se fundem no mesmo fundo. Incolor, denso... Imaterial.
Difícil será imaginar, mas não tão intangível como aquele que nem ao espanto lembra!

Nem olfacto, nem palato, que ainda o tempo era cedo e já caíam, na pressa de esquecer por não haver lugar sequer para o tempo de lembrar. Há quem diga que se morre devagar, desde o primeiro choro. Estes, se assim não é, cedo começam a morrer por cedo se achar que se começa a fazer tarde.
Tarde ou nunca se saberá quantos sabores serão cheiro. E de ausência já nem lembra, de entre as outras que se vão.

Será o toque da pele que se vai num estranho vazio entranhado?
Não é tanto o pasmo de não haver tacto, pois nem sentido faz haver o que haja a tactear. Não é o deixar de ser a fronteira dos pés e o estremo de cada mão, nem a ausência da rigidez que finalmente se percebe em cada articulação. Nem a vertigem de quem já não tem horizonte nem ponto zero, de quem já não tem cabeça nem ondula respiração. De quem já não sente o sangue a correr.
Não há imaginação para além da implosão do corpo condensado no umbigo e este finalmente desvanecido.
Não! Não há maior espanto!
Nada maior que o fim da dor!
A dor!

Não há dor!
Não há o peso da dor! O que lentamente aprendermos a suportar no hábito de mais carregar.
Aprendemos tão bem a dor lenta, tão subtil e crescente, que mais não cremos que venha a ser dor. E em cada passo adiante será tomada dor nova como constante de mais uma prova, a refrega de vida na dor a domar. E tão subtil é a ilusão de que a dor é domada que nada se toma por afeição, nada se entende por mais, mas sim por menos. É neste vício de dor superada que mais se suporta, mais peso que se carrega apertando a curvatura que por dentro nos verga.
Não! Não imaginamos a ínfima parte do peso da dor que se carrega.

Imagem e desejo. Imaginar o sentido no tempo que cessa.
É recorrente a ideia de que, sem o peso da dor, só existe um sentido...
Ascensão.