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20080921

Esta não é a carta que te quero escrever.

Esta é uma carta com forma de comprimido. E sem que isso seja algo mais que a forma... de comprimido, não me parece nada apropriado que uma carta em forma de comprimido seja a carta que te quero escrever.
Mas isso não importa, dir-me-ás detrás da tua vontade de saber de mim sem saberes que de mim já pouco resta.
Purgo-me à laia de cão envenenado cujo instinto manda que coma erva, cardo e radícula sem parar até que se inverta o último espasmo e adiando cada segundo de vida. E depuração não é decididamente o que deverá constar na carta que te quero escrever.
Teimarás em saber onde me podes chegar à mão sem saberes que não há mão que suspenda a alma.
Náusea, vertigem. Que não te pareça estranho que se possa estar cheio de realidade, crescente cá dentro, presença contínua que se alimenta de fantasmas, entranhada de uma forma tão densa, tão pegajosa que me sinto violado por todos os poros, cego de sonho e transparência, com ânsia de respirar para além do que é real.
Não consigo impedir a realidade que transborda aqui nesta carta que não é a carta que te quero escrever.
Estranhamente, esta realidade foi-me oferecida. Pára, disseram-me. E parei. E este é o grande vórtice de estar quieto, aqui entre o muro e o fuzil, aqui quieto de cego, surdo e mudo. Encerrado dentro de mim como nunca, com a realidade a encher-me inundando todos os cantos com o ímpeto de um rio de tal forma que parece já não haver mais espaço para mim aqui dentro. E estalo.
Rebento pelas costuras.
Regurgito a realidade extravasada em palavras.
Entorno um estranho caldo fermentado onde bóiam pedaços de mim.

Talvez um dia consiga escrever a carta que te quero escrever.

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