hoje verbo hoje verso hoje verto hoje perto hoje certo hoje corto hoje corro hoje morro hoje

20081012

aDiar Io

Sentia sempre a mesma inquietação de cada vez que voltava. Coração em aperto, mãos húmidas de frio, um ligeiro tremor de joelhos. A mesma turvação no voltar à mesa e iluminá-la da luz baça do pequeno candeeiro, o arredar da cadeira, o ajeitar da almofada e o sentar sombrio em perfeita postura.
Respirar fundo, levantar os olhos ao horizonte adivinhado por detrás da pequena janela sem cortinas, por detrás do ondular imperfeito do vidro, por detrás da névoa em véus de cinza, as copas desnudas dos ulmeiros num ocaso setentrional, lá longe.
Estranhar o seco arrastar da gaveta como se abrir fosse o último som, o da caixa de Pandora. Inspirar a cera e o couro velho exalado de dentro, o perfume inebriante das coisa antigas, tempero perfeito ao toque macio do castanho estriado em lenhos de gerações.
Adivinhar na escura entranha da gaveta, a cana e o tinteiro, ascende-los à luz num gesto que falece lento a pousar no tampo. Absorto o modo de colocar à direita a cana, em perfeita perpendicular, encimada ao centro pelo tinteiro. Num luzeiro pintado a meia esquadria, o brilho fino da tampa que cobre de prata o vidro baço da tinta, a centelha dourada do aparo em cana lacada a rubro.
Olhar o leve cintilar do fecho que tranca uma sombra dormente na gaveta. O morno afago da capa de pele, colhido em mãos de perfeita simetria, num continuo movimento que aquece a larga curva até ao ponto de assento que equilibra no tampo de castanho, candeeiro, cana e tinteiro.
Abrir o fecho que encerra o que de mais fundo na alma se encontrou. Soltar a capa que esconde a mais secreta das confissões. Folhear um a um os cadernos de mágoas desfolhadas em cada desventura. Ler nas páginas a voz calada dos dias esquecidos, nas palavras o sentido da memória viva e em cada letra a linha pulsante do coração.
Virar a última página escrita, vislumbrando uma aurora tardia a inundar de branco o olhar contido das palavras por escrever e...
Não!... o impulso de se erguer na cadeira derrubada.
Não pode!... o espanto cravado na face contorcida.
Mas quem?... o tremor nos braços que sustentam o corpo sobre a mesa.
Ninguém poderia... balbuciar atordoado, a descrença em salpicos de ira, a saliva incontida na página que seria em branco.
Impossível!... a visão das palavras impressas em caracteres antigos, o aviltamento daquela tinta rubi, indelével.
Isto aqui não é um diário, pá! Vens p'ra aqui com lamúrias de adolescente parvo... ai ai ai, mas existo p'ra quê?... nham nham nham, que ninguém me liga, chato e feio... ti ti ti, coitadinha da minha infelicidade que morre sozinha... Porra, pá!... Não há cú qu'aguente!... Isto aqui é para escrever! Escrever, pá! Sabes tu o que é escrever?... Diz-me. Escreve-me aqui nas faces o que sabes tu da escrita. Vá! Desafio-te. Mostra-me que não é em vão que me deixo sujar da tua tinta.
Sentia sempre a mesma inquietação em cada apresentação. Coração em aperto no breve discurso cuidado em linguagem informal. As mãos húmidas de frio agradecimento à felicitação dos editores. Um ligeiro tremor de joelhos no aceno formal dos críticos literários. A mesma turvação no voltar à mesa de autógrafos e ter de dedicar O Livro Que Se Escreveu Sozinho a cada um dos fãs naquela fila interminável.

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